Quando qualquer dificuldade ou medo aparecem pelo caminho, a inocência das crianças vira combustível para nossa valentia
Foto Marcelo Nozaki Tashiro |
Certa vez, tive que me submeter a uma ressonância magnética
com contraste, um exame que me foi prescrito como parte de uma nova rotina de
prevenção. Para quem nunca fez, uma rápida descrição: você entra num tubo com
um minicatéter na veia por onde será aplicado o contraste.
Dentro daquele túnel um tanto apertado, você ficará na mesma
posição por 20 minutos, tirintando de frio se for friorento como eu porque uma
máquina como aquela requer um ar condicionado capaz de reproduzir o clima do
ártico. O barulho que ela emite é ensurdecedor, entrecortado por paradas
breves, rápidos silêncios que só servem para aumentar a expectativa em relação
ao próximo estrondo. Tampões de ouvido reduzem o desconforto, mas minha alma
claustrofóbica precisa mais do que isso para não surtar dentro de um túnel
gelado sem ninguém em volta para dar apoio moral.
Controlar o medo era o meu desafio porque o frio parecia não
ter jeito, apesar do cobertor sobre minhas pernas e a camisolinha de hospital.
A meu favor, contava a vergonha. Só a vergonha me impediria de apertar sem
querer a campainha que só deve ser acionada em caso de emergência. "Se a
senhora sentir alguma coisa", explicou a enfermeira.
>> Mais colunas de Isabel Clemente
Eu estava sentindo frio e medo, mas acho que frio e medo, mesmo
sendo "alguma coisa", não caracterizam situação de emergência. Havia
também apreensão com o resultado, sabe lá. Ninguém passa sem ficar um pouco
tenso por um escrutínio desses. Vai que, no detalhe, aparece um defeito no meu
corpo? O que farei? Também não era o caso de parar o exame por causa disso e eu
fora bem orientada pela gentil enfermeira. Não mexe para não atrapalhar o
exame. Diga isso para minhas pernas que não param de tremer de frio.
Só que o tempo, esse inimigo implacável dos ansiosos, não passava.
Na minha cabeça, aquela revolução em torno do meu campo magnético - mesmo
restrita à sala do exame - estava destrambelhando todos os relógios da clínica.
Era a única explicação para o tempo, esse traidor, não passar.
As marteladas e as sirenes me soavam como as trombetas do
apocalipse. O mundo vai acabar comigo aqui dentro, eu tinha certeza. Eu tinha
que me acalmar. Eu precisava sobretudo voltar inteira para minha família, meu
marido e minhas filhas, o trio que dá sentido à minha vida. Tratei de dizer
coisas boas para mim. Que privilégio fazer um exame tão detalhado. Que honra,
pensei, ter médicos tão atentos, não é verdade? Essa era eu, não mais Isabel,
mas Polyanna.
Foi quando me ocorreu uma ideia mais elevada. Imagina se
fosse uma criança? Antes eu do que minhas filhas. Antes eu, antes eu. Mas e se
uma delas estivesse no meu lugar? O que eu faria para acalmá-la? Iria cantar,
cantaria tão alto que minha voz calaria a máquina e a mente da gente. E quem
sabe assim, melodia, versos e poesia viriam nos salvar das trombetas
irritantes.
Eu iria também fantasiar. Porque fantasia é um lugar para
onde podemos ir toda vez que a realidade parecer assustadora de mais. Estamos
no meio de uma potente demonstração de tecnologia, pura ficção-científica, quem
sabe dentro de um foguete em reparos. Ou prestes a decolar. Percebe o barulho
da engrenagem?
Para resistirmos à viagem, precisamos de vitamina. Ir para a
lua não é para qualquer um. Esse líquido geladinho entrando pela veia nos dará
superpoderes no espaço, eu posso sentir, e você? Estranho, mas genial! Ele
passeia pelo meu corpo agora.
Àquela altura, com gadolínio circulando nas veias, eu já era
uma mulher mais forte, uma mutante, com garras de Wolverine e poderes da
Tempestade. Nunca mais serei a mesma. Vou fazer chover e relampejar quando sair
daqui.
Esse frio todo vem da lua, lugar inóspito onde, dizem,
poucos pisaram. Os próximos seremos nós, comemorei com ar de vitória. Minha
mente inquieta decidida a acalmar uma criança imaginária entoou todas as
músicas preferidas das minhas filhas na viagem rumo ao espaço. As canções
embalaram os minutos finais do exame. E o tempo, um rebelde resistente já
dominado, voou.
Esqueci os barulhos do lado de fora. A vida dentro de mim
estava mais divertida. Se a ressonância captasse pensamentos e reproduzisse
imagens dos meus sentimentos, imprimiria depois uma pauta musical colorida com
versos infantis, falando de natureza, de lagarta e borboleta, de Léo e Bia, de
dias brancos, piratas e princesas.
Para tirar minha mente daquele tubo gelado, eu ficava apenas
imaginando o sorriso inocente das duas crianças. Sem nada saber do que tinha me
acontecido, elas apenas me saudariam em casa com um oi embrulhado em sorrisos,
prontas para viajar comigo nas nossas aventuras interplanetárias.
É isso o que os filhos fazem pela gente. Mesmo longe,
continuam presentes. As minhas filhas transformaram uma menina cheia de medos
numa mulher um pouco mais valente.
Texto De Esabel Clemente
Fonte Revista Epoca.
Nenhum comentário:
Postar um comentário